TEÓLOGO LEONARDO BOFF MESMO LAMENTANDO E REPUDIANDO O ATO BÁRBARO DO ATENTADO DE PARIS, ENGROSSA ALINHA DOS QUE TESTIFICAM "NÃO SOU CHARLIE. JE NE SUIS PAS CHARLIE"
" Foto: Teólogo Leonardo Boff"
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
Teólogo Leonardo Boff compartilha texto em que explica por
que também 'não é Charlie'; "Na religião muçulmana, há um princípio que
diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um
preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os
muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a
imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos… Qual é o objetivo disso? O
próprio Charb falou: 'É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o
catolicismo'. 'É preciso' porque? Para que?", questiona; numa charge de
Latuff, de 2012, Charb, uma das vítimas da chacina, foi retratado como
homem-bomba.
Há muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris,
matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes
mais profundas deste fato condenável mas que exige uma interpretação que
englobe seus vários aspectos ocultados pela midia internacional e pela comoção
legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia
milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se responde com o assassianto.
Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a
alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos.
Publico aqui um texto de um padre que é teóloogo e historiador e conhece bem a
situação da França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os
conheçam. Suas reflexões nos ajudam a ver a complexidade deste anti-fenômeno
com suas aplicações também à situação no Brasil: Lboff.
Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados
e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões,
sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…
Lembro da frase de John Donne: “A morte de cada homem
diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por
quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu”
levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na
conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo
morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou
constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a
revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta
última eleição.
A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada
em 1970, é mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo
(eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma
bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês
Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita
europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de
Expressão”, mas tem mais…
O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que
escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de
“não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet
(críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele ficou no
comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só
como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges
relacionadas ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…
A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria,
imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos
igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição
de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os
atentados do World Trade Center, a situação piorou.
Alguns chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os
“gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de
“mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da
emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários políticos de
colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato
é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um
princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma.
Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita
todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico
chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…
Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso
que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque?
Para que?
Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos
radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo
religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam
da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura
alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações,
diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a
revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e
intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões
nas últimas eleições e no julgar com dois pessoas e duas medidas caos de
corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.
Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse
incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o
cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles
fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…
Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o
jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre
estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou
fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e
“explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”,
mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma
generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele
muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que
aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e
disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros
que assaltam…
E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa,
com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de
Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos
rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre preconceituosas,
ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista,
as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe
terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho
muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que
inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são
alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas.
Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que
eles também criticavam católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é
censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já
existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando
histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados
discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a
homofobia, isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que
você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra
pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim…
Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre
burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que
deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado.
Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as
consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos
judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.
Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns
urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado
vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa
cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa
fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas
franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população
do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia,
que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda.
Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de
expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos
muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas
para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam
as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados, um deles
com granadas!, nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta
ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao
fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos
muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do
atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie.
Charge de Latuff, de 2012, Charb, uma das vítimas da chacina, foi retratado como homem-bomba.
Charge de Latuff, de 2012, Charb, uma das vítimas da chacina, foi retratado como homem-bomba.
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